Imprimir
Charlotte Mason Educação Clássica

Charlotte Mason Faz Parte da Tradição Clássica de Ensino? Sim!

Charlotte Mason não utilizava para si o termo “clássico”. Entretanto, se olharmos para a essência de seu método iremos sim verificar que ela fazia parte da tradição clássica de ensino. Mas antes de qualquer coisa, precisamos nos perguntar: o que é esse tal de método clássico?

A interessante criação de Dorothy Sayers

No Brasil, atualmente, se utiliza a expressão “método clássico” como sinônimo do movimento que teve origem com o trabalho de Dorothy Sayers em seu ensaio “As ferramentas perdidas da aprendizagem“. Dorothy Sayers deu um novo significado às três artes liberais (gramática, lógica e retórica), transformando-as em três fases de desenvolvimento humano. A primeira seria a fase em que a criança memoriza muitos fatos, a segunda consiste na organização desses fatos de forma lógica e a terceira é a expressão da organização desses fatos forma elegante.

Essa abordagem foi chamada de “trivium aplicado”. É uma teoria muito interessante, entretanto é algo novo e inaudito na história da tradição clássica de ensino. Algo tão novo na história, tendo surgido no século XX e sendo desconhecido de pessoas como Platão, Aristóteles, Agostinho, Hugo de São Vítor, Santo Tomás de Aquino, poderia ser classificado como clássico? Por esse motivo, muitos classificam tal abordagem como “método neoclássico”.

Charlotte Mason e a tradição clássica

Particularmente, acreditamos que Charlotte Mason está mais alinhada com a tradição clássica. Daremos nossos motivos para pensar isso.

Primeiramente, Charlotte tinha grande consideração pela grande literatura. A literatura clássica e universal, que abarca nomes como Shakespeare, Cervantes, Dante, Homero etc. Charlotte, na verdade, defendia que a criança deveria estar em contato com as grandes personalidades de todos os tempos, seja na disciplina de literatura, na arte, na música ou em qualquer outra. Em outras palavras, a criança não deveria ser rebaixada aos livros bobos, aos assuntos superficiais e apenas contemporâneos, mas ter diante de si as riquezas da nossa civilização, desde os antigos hebreus, gregos e romanos.

Charlotte tinha uma visão de ensino tradicional e “não revolucionária”, no sentido de buscar dar à criança uma visão de tudo aquilo que é grande e nobre e que nos foi repassado e preservado pelas pessoas que vieram antes de nós. É o oposto do ensino atual, que busca inculcar na criança um criticismo soberbo de tudo o que é antigo e passado.

O ensino de línguas estrangeiras nas escolas de Charlotte era levado a sério, inclusive o do latim. A história mundial e os estudos bíblicos também tinham seu lugar especial. Charlotte era adapta de que a criança deveria desfrutar das ideias nobres, ou seja, da apreciação de tudo aquilo que é Bom, Belo e Verdadeiro. Seu ensino visava uma ampla variedade de assuntos em um “amplo banquete de ideias vivas”. Shakespeare, canto, poesia, ciências, geografia, história, matemática, apreciação de arte, estudo da natureza, caligrafia, música, Bíblia, artesanato, desenho, línguas etc. Assuntos instigantes que nutrem na criança um verdadeiro maravilhamento pelo mundo e amor pela aprendizagem.

Apesar da variedade de assuntos, seus currículos eram profundamente baseados em boa literatura, no domínio da linguagem e na aquisição de habilidades básicas. Mesmo em temas como ciências, história e geografia, o estudante trabalha sempre com livros vivos, com isso trabalhando também leitura, narração, ditado, cópia (transcrição), composição, caligrafia, vocabulário, ortografia, interpretação de texto etc. e, portanto, habilidades de domínio da língua. Tais disciplinas são vistas não como mais um peso na rotina de educação ou como meios para decorar dados mortos, mas como fontes de verdadeira inspiração.

Charlotte Mason e o domínio da linguagem

Podemos ver essa busca pelo domínio da linguagem pelos cronogramas semanais das próprias escolas geridas pelos programas de Charlotte Mason. Por exemplo, apesar da amplitude de assuntos estudados, nos primeiros três anos de educação formal, dos 6 aos 8 anos, as lições de leitura/alfabetização e as lições de caligrafia/cópia comportam tempo mais generoso do que as outras disciplinas, além disso, todas as leituras eram narradas.

Charlotte Mason advogava o conhecimento por meio das ideias, principalmente expressas em grandes livros. Para apreendermos as ideias precisamos ouvi-las ou lê-las, e para isso precisamos saber, entender uma língua. Não adianta ler Dostoiévski em russo para uma criança; se ela não sabe russo, ela não vai entrar em contato com aquelas ideias. Não precisamos ir tão longe. Se lermos Machado de Assis para uma criança da pré-escola ela entenderá? Ela se relacionará com ele? Mais fácil que ela tome ódio. O vocabulário, a sintaxe, as nuances e as metáforas estão muito além da sua maturidade linguística.

Charlotte diz que “crianças são pessoas”. Sim, mas isso não anula o que acabamos de falar. Portanto, quanto mais dominarmos uma língua, mais teremos as habilidades necessárias para entendermos e apreendermos as ideias expressas nos livros. Justamente por isso, os currículos de Charlotte Mason eram muito bem graduados respeitando esse desenvolvimento da linguagem da criança.

Leitura, narração oral e escrita, composição, cópia ou transcrição, ditado, gramática, recitação… Tudo isso faz parte do domínio da linguagem. E tudo isso faz parte de um currículo Charlotte Mason. É claro, sem essas ferramentas, ficaria difícil estar em contato com o conhecimento da humanidade, com as grandes ideias expressas nos livros.

Um grande mito sobre “educação clássica”

Precisamos desfazer um grande mito. Quando falamos em uma educação clássica ou no trivium, as pessoas pensam que a criança lidava apenas com fonética, morfologia, sintaxe, semântica, enfim, com gramática tal como conhecemos hoje, por longos anos até chegar finalmente às próximas etapas. Só nessas próximas etapas o estudante poderia lidar com textos e pensamentos mais complexos, com crítica, argumentação, organização lógica, exposição oral etc. Nada disso. E esse mito talvez tenha surgido modernamente por causa de Dorothy Sayers. A “gramática” no trivium não era nem a decoreba de fatos e informações soltas, e também não era apenas o estudo seco das regras gramáticas como conhecemos hoje. Transposta para os dias atuais, talvez a disciplina de gramática no trivium fosse mais bem chamada de “Gramática, literatura e conhecimentos gerais”.

Por exemplo, a célebre educação dos jesuítas, a Ratio Studiorum, na disciplina de gramática, os alunos lidavam com os clássicos latinos, com poesia, com textos de história e geografia antigas, com mitologia, com textos religiosos, com textos retóricos, com cartas etc. E então, por meio de vários exercícios, como nos explica o Padre Leonel Franca, o aluno já exercitava a imaginação, a razão e o juízo. Não era uma “decoreba de fatos”.

A cada etapa da educação clássica o aluno vai talhando a linguagem cada vez mais. Da expressão clara e exata da gramática, passando pela expressão rica e elegante da disciplina de humanidades, e chegando até a expressão poderosa e convincente da retórica. Mas em todas essas etapas, o estudante, como pessoa que é, já está lidando com a compreensão dos grandes autores, com as ideias vivas destes autores e exercitando de forma ativa a mente. Aqui está uma convergência grande com Charlotte Mason, que estabelecia etapas diferentes, mas com objetivos similares.

Disso podemos tirar duas conclusões: a educação clássica (a verdadeira) é sim variada, assim como a educação Charlotte Mason, e as duas dão lugar especial ao domínio da linguagem, entretanto de formas diferentes. Na educação clássica antiga havia um foco maior na linguagem formal (gramatical, digamos), até porque não havia um estatuto autônomo das disciplinas modernas como história, geografia etc. Essas disciplinas eram tratadas como “erudição” ou “conhecimentos gerais”, sendo vistas dentro do próprio trivium. Na educação Charlotte Mason, que é bem mais posterior, também há um foco no domínio da linguagem, naturalmente e necessariamente como explicamos. Mas seu estudo é mais equilibrado e graduado ao longo dos anos, dando espaço assim também para as outras disciplinas, que obviamente necessitam das artes da linguagem para serem bem trabalhadas e assimiladas.

Os fundamentos educacionais de Charlotte Mason

Charlotte definia a educação como “uma atmosfera, uma disciplina, uma vida“. Nós podemos entender essa colocação como: a atmosfera de um lar bom, familiar e piedoso, a disciplina de bons hábitos e virtudes, e, por fim, o ensino acadêmico de ideias verdadeiras, belas e boas, ou seja, vivas. A criança deve estar sempre desfrutando os melhores livros das maiores personalidades, elevando-se sempre a padrões mais altos.

O método de Charlotte não ignora o mundo material e nem espiritual, além disso, advoga que a verdade é cognoscível por meio dos sentidos, algo muito aristotélico e tomista. Em outras palavras, ela acreditava que a pessoa apreendia o mundo por meios dos cinco sentidos criados por Deus, e que assim o conhecimento da realidade é possível. O universo existe e é real, e a inteligência humana pode conhecê-lo. Algo contrário ao extremo relativismo e à negação dos valores absolutos dos tempos atuais. Entretanto, Charlotte Mason chegou a criticar os educadores cientificista do seu tempo, que queriam criar uma educação apenas baseado em treinamento dos sentidos e objetos manipuláveis. O método de Charlotte considera isso, mas sem desprezar a importância da literatura, da arte e da música.

Como cristã, Charlotte defendia o estudo de ciências como uma forma de conhecermos melhor a Deus, algo para nos maravilharmos e assim conhecermos melhor o Criador de todas as coisas. Algo diferente da educação atual, que coloca a Natureza com N maiúsculo, pautando-se em um ambientalismo radical que estabelece a própria natureza como deus e não como criação de Deus.

A criança não é um animal a ser adestrado, ou uma peça político-social. Charlotte defendia a ideia profundamente cristã de que a criança é uma pessoa. Não um pequeno demônio, nem um pequeno anjo, mas uma pessoa com uma alma eterna. Não um indivíduo atomizado como querem os liberais, não um homem-massa a serviço do Estado e do coletivo, como querem os totalitários. Mas uma pessoa inteira. Corpo e alma. Inteligência e vontade. Com tendências para o mal e possibilidades para o bem. Como pessoa, ela deve ser respeitada como tal. De fato, o seu método respeita bastante o ritmo, o desenvolvimento natural, as ideias e a personalidade da criança.

Seu método é contrário à massificação, ao utilitarismo e ao materialismo da educação moderna. A educação moderna é um adestramento para o trabalho e/ou para moldar a criança a um projeto ideológico. Essa não é a visão de Charlotte Mason. Sua ideia era a formação integral da pessoa. Essa educação integral está em total consonância com o que se entende por educação clássica e católica, ou seja, não apenas a educação do intelecto, mas também da vontade, do corpo e do espírito.

Os grandes livros da história da humanidade, a apreciação de tudo o que é Bom, Belo e Verdadeiro em música, arte, literatura e outras áreas, o cultivo de bons hábitos e virtudes, o domínio da linguagem, a intenção de preservar o grande legado da civilização ocidental, e a visão integral do ser humano… todas essas observações nos levam a concluir que Charlotte Mason está inserida na tradição clássica de ensino.

 

Para se aprofundar no tema, leia:
Consider This: Charlotte Mason and the Classical Tradition – Karen Glass
Charlotte Mason and Classical Education by Susan Wise Bauer 

error:
Abrir chat
Precisa de ajuda?
Olá!
Podemos te ajudar?